O pecado que pode transformar sua adega em um depósito de vinagres 38686c
Na maior parte das vezes, é um erro levar ao pé da letra a história do que vinho bom é vinho velho 232s4i

Está lá no Evangelho de Lucas: “Ninguém que já bebeu vinho velho, quer o novo; porque diz: ‘O velho é bom’”. Como mostra a Bíblia, vem de tempos antiquíssimos a ideia de que é necessário guardar por um bom tempo uma garrafa antes de abri-la. Muita gente ainda segue à risca essa história. Não é raro hoje em dia topar com um casal que exibe orgulhoso o vinho comprado para tomar quando o recém-nascido completar 18 anos. O rótulo a de mãos em mãos e volta para adega até a chegada da próxima visita, quando todo ritual começa novamente. Ocorre que, na grande maioria das vezes, é um erro enorme fazer esse tipo de coisa. Segundo escreveu certa vez o mundialmente respeitado crítico americano Robert Parker, a guarda longa “é um caro exercício de futilidade”. Pior do que isso: pode ser o caminho mais curto para arruinar o investimento feito em uma adega.
A crença de que vinho bom é vinho velho se justificava no ado, quando os processos de vinificação eram precários e era preciso de tempo na garrafa para amaciar taninos e o líquido tornar-se bebível. Os tempos são outros agora e é preciso muito cuidado ao manter uma guarda prolongada. “Todo vinho tem um ciclo: o amadurecimento, auge ou platô, quando entrega o máximo de seus aromas e sabores, e a decadência”, explica Julio Kunz, vice-presidente da Associação Brasileira de Sommeliers e mestre em vinhos ses. Alguns vinhos têm ciclos mais longos ou mais curtos, isso depende de suas características, sendo que uma das mais importantes é a acidez. A maneira que são vinificados também influencia nesse ciclo. No caso dos Bordeaux, muitos têm Merlot e, por isso, com clássicas exceções, eles tendem a evoluir muito rápido. Como não envelhecem bem, é bom desconfiar de quem apresenta de forma orgulhosa uma adega com dezenas de Bordeaux dos anos 90. O líquido que está dentro das garrafas vindas da França já se tornou decrépito. Moral da história: não dá para generalizar, estocando na adega qualquer coisa por anos e anos, mesmo que seja um renomado Bordeaux.

Sem medo de errar, pode-se dizer que mais 90% dos vinhos atualmente são produzidos para serem consumidos jovens ou em poucos anos. “Brancos aromáticos, rosés leves e tintos frutados devem ser abertos em, no máximo, três anos”, diz o especialista. O famoso vinho francês Beaujolais Nouveau, por exemplo, que tradicionalmente é lançado toda terceira quinta-feira de novembro, deve ser consumido em até um ano. Ele é produzido por maceração carbônica, método em que as uvas são colocadas inteiras dentro do tanque fechado hermeticamente, no qual é inserido dióxido de carbono (CO2), o que faz a fermentação começar dentro dos bagos da fruta até que ela estoure e não precisa ser esmagada para a extração do mosto (suco) que dá origem ao vinho. O resultando é leve e frutado. Se for guardado por mais tempo, pode perder todas essas qualidades.
NÃO É PARA TODOS OS GOSTOS E BOLSOS
Em minha recente visita a cave da Valduga, no Vale dos Vinhedos, a sommelière que comandou a degustação nos contou de casos de pessoas que ligam na vinícola possessas, pois guardaram por mais de cinco anos um Naturelle, um tinto vinho suave. Quando abriram a garrafa, a bebida estava totalmente estragada. A culpa é do vinho? De forma alguma. “Vinho mal armazenado ou guardado para além do seu período de auge vai ter intensidade aromática baixa ou nada de fruta”, diz Kunz. Também podem aparecer notas desagradáveis de ervas, aromas oxidados como o de acetona ou vinagre, baixo taninos e zero acidez, o que chamamos de vinhos plano ou chato.
Isso não significa que o Brasil não produza vinhos com potencial de guarda. Há muitos exemplares com características que justificam o armazenamento, notadamente os da Serra Gaúcha, por serem ricos em acidez. Na Serra Gaúcha os cortes bordaleses envelhecem muito bem. Os brancos também podem envelhecer de maneira linda. Kunz me contou que, certa vez, degustou um Malvasia de Cândia, safra 1947, e o vinho estava delicioso, mesmo após oito décadas!
Vinho também não gosta de agitação, tremores, luz ou mudanças de temperatura, por isso a maneira de armazenar é muito importante. O ambiente precisa estar em torno de 15 graus, com umidade controlada. Nos casos em que o vinho aguenta e justifica uma guarda prolongada, é necessário um cuidado adicional. “De tempos em tempos, precisa conferir a rolha. A cada quinze anos, ela precisa ser trocada, como fazem as vinícolas mais tradicionais”, diz Kunz. O rearrolhamento ou “rattling” é uma serviço prestado por casas como Château Latife-Rothschild, Penfolds, Biondi-Santi, Château Latour e Cheval-Blanc. O armazenamento inadequado pode, no melhor dos casos, levar o vinho a amadurecer mais rápido e chegar antes do tempo ao seu auge. No pior dos cenários, a bebida se torna “imbebível”.
Quem gosta de vinho mais velhos e evoluído provavelmente sabe que eles não são tão vigorosos em frutas frescas ou não tem as mesmas características dos mais jovens. Com a evolução, eles desenvolvem aromas terciários, como o de frutas secas como figos e ameixas, além de especiarias como noz, canela, couro, tabaco e até cogumelos. A cor também deixa a paleta de vermelhos vibrantes e caminha para um tom mais castanho e âmbar. Há quem não goste de vinhos mais evoluídos, a colunista que vos fala pode garantir que raramente jovens bebedores ficaram inebriados por esses sabores e aromas. É é preciso treinar o paladar e (o bolso) para essas preciosidades.
Kunz, que costuma abrir em seu aniversário vinhos com a safra do ano do seu nascimento, conta que abrir garrafas velhas é sempre uma loteria. “No ano ado comprei dois Riesling na Alemanhã, um estava perfeito, eu havia feito a compra direto da vinícola. E o outro, comprei de um negociante que comprava vinhos velhos de famílias que estavam se desfazendo de suas adegas e não foi uma experiência boa. Estava com uma cor muito escura, totalmente oxidado e com aromas não preservados”, conta. O vinho podia estar mal armazenado. “Quanto mais você guarda um vinho, maior a chance de ter surpresas boas e ruins”, diz. Isso acontece porque os vinhos de mais qualidade costumam não ter tantos conservantes químicos e nem seguem receitas como um refrigerante de cola. São vivos e evoluem de formas diferentes, por isso conseguimos ver as vezes características muito distintas nas chamadas verticais (degustações de safras ao longo de um período) do mesmo vinho.
Para quem vai se aventurar com vinhos velhos e evoluídos, a receita é comprar de fontes confiáveis e certificar-se de que não houve nem haverá muita bagunça na receita daquela garrafa. Mesmo assim, tenha em mente que a alta gama do mundo dos vinhos não é uma ciência exata e é justamente isso que o torna tão interessante. Seguir à risca o conselho do Evangelho de Lucas pode ser o caminho mais curto para o pecado de transformar vinho em vinagre.
Confira a seguir uma tabela com o tempo adequado para o armazenamento de vários tipos de vinhos:
1 ano
Beaujolais Nouveau e demais produzidos por maceração carbônicas
2 a 3 anos
brancos aromáticos
rosé leves
tintos macios (menos tânicos) e frutados
5 a 10 anos
Chardonnay barricados (que envelheceram em barricas de carvalho)
Tintos robustos (cortes bordoleses, Cabernet Sauvignon chilenos, por exemplo)
10 a 15 anos
Vinhos da região Medoc (sub-região de Bordeaux), Pomerole e Souterns, por exemplo. Os italianos Barolos, feito da uva Nebbiolo, são famosos por seu extenso potencial de guarda.
Mais de 50 anos
Graças ao açúcar, vinhos fortificados ou doces como Sauternes, Jerez, Marsala e Porto podem ter mais de cem anos de guarda, com suas características preservada e com ganhos em complexidade.