O que o caso Elon Musk revela sobre o ‘uso funcional’ de drogas 21k6z
Ele lidera impérios e fala com chefes de Estado — tudo enquanto usa cetamina, LSD e estimulantes. O problema não é o escândalo, mas o silêncio ao redor 373s36

Elon Musk já foi notícia por quase tudo: sua fortuna estratóferica, foguetes, carros elétricos, inteligência artificial, colapsos no X (ex-Twitter), filhos… Mas agora, o centro da atenção é outro: seu uso intenso de substâncias psicoativas.
Reportagem recente do New York Times confirmou que a imprensa já apontava há tempos: Musk consome drogas (nem todas legais) aparentemente de forma excessiva – e teria intensificado o uso nos meses de governo Trump.
Tudo leva a crer que fazia isso durante reuniões e apresentações. Antes de decidir o futuro de empresas bilionárias ou dando pitacos nas decisões que afetam todas as pessoas do planeta.
O espanto inicial da opinião pública é compreensível. Mas revela mais sobre nossa dificuldade coletiva de entender o uso funcional de drogas do que sobre Musk em si.
Sim, é possível que alguém use substâncias com frequência — até remédios prescritos, mas em contextos bem diferentes dos recomendados — e continue “funcionando”: trabalhando, entregando resultados, liderando. Afinal, o que significa mesmo “funcionar” quando falamos de uso de substâncias?
Será que dá para encaixar essa experiência numa caixa simples, onde a pessoa está ou só “bem” ou só “mal”? Na verdade, o uso problemático é mais como um degradê, uma escala com várias nuances entre o branco e o preto, que varia ao longo do tempo e das circunstâncias.
Para entender um pouco melhor, vale olhar para algumas dessas substâncias. A cetamina, por exemplo, é um anestésico com potente efeito dissociativo — uma sensação de distanciamento do próprio corpo e das emoções, como se o usuário estivesse “fora de si” por um tempo. É usada em doses controladas no tratamento da depressão resistente, mas também pode ser abusada recreativamente, com riscos sérios à saúde.
O ator Matthew Perry, conhecido por seu histórico de dependência química severa, morreu de overdose de cetamina e outras substâncias.
Já o LSD e o Ecstasy alteram a percepção e ampliam sensações de conexão e criatividade. O Adderall, por sua vez, é um estimulante usado no tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, mas, fora desse contexto médico, seu efeito de aumento de foco e energia pode se tornar um atalho perigoso para sustentar ritmos de trabalho intensos.
Não é difícil imaginar o apelo de cada um desses efeitos em contextos de altíssimo desempenho, exposição constante e pressão desumana. Mas isso não significa que tudo está bem.
O que Musk revela — talvez sem querer — é que muita gente vive assim. Executivos, professores, médicos, artistas, pais e mães de família. A executiva de marketing, sempre impecável, com um problema grave de álcool.
O empresário da construção civil, produtivo e enérgico, que depende de estimulantes para manter o ritmo. O político de família tradicional, deprimido, que introduz cocaína em suas conversas como se fosse trivial. E mais, o avô educado, “gentleman”, que se transforma no Incrível Hulk toda vez que bebe. E a avó amorosa, que só dorme ao se medicar com doses altíssimas de ansiolíticos — como se fossem água.
Pessoas que convivem com o uso problemático de substâncias e que, ao manterem uma aparência de normalidade ou desempenho funcional, am despercebidas por anos. Ou quase: amigos, colegas e familiares muitas vezes desconfiam. Ou percebem. Ou sabem. Mas hesitam em agir.
Por quê? Medo de errar, receio de destruir reputações, preocupação com o impacto emocional e até a ideia antiga — e equivocada — de que o uso de drogas é uma questão moral, não médica. Não é.
O uso problemático de substâncias é uma condição de saúde multifatorial, com raízes neurobiológicas, psicológicas e sociais. E como qualquer condição de saúde, quanto mais cedo for reconhecida, mais chances teremos de um cuidado eficaz.
Muitas vezes, as pessoas simplesmente não sabem como agir. E o silêncio — por mais bem-intencionado que pareça — só reforça um ciclo que ninguém quer encarar de frente.
Então, o que fazer? Começar pelo básico, mas essencial: parar de encobrir. Não normalizar comportamentos que claramente indicam um problema. Se o uso é frequente (não precisa ser diário), se há mudanças marcantes no humor, no sono, nas relações ou nos hábitos, se os riscos se acumulam — vale a pena tomar uma atitude.
Fique atento se a pessoa começa a usar mais do que dizia que usaria, se tem dificuldade de parar, se organiza a rotina em torno do uso ou se continua mesmo quando isso já está gerando prejuízos no trabalho, nos relacionamentos ou na saúde. Pode ser uma conversa cuidadosa, um convite para buscar ajuda, o estabelecimento de limites. Não se trata de acusar ou punir, mas de romper a conivência silenciosa que muitas vezes impede que o cuidado comece.
Claro, nem todo uso leva a uma situação grave. Muitas pessoas conseguem reduzir ou interromper o uso sozinhas ou com apoio pontual. Mas há aquelas que, sem esse olhar atento, acabam chegando tarde demais para um tratamento eficaz.
E quando figuras públicas entram em cena, como Musk agora, o debate costuma deslizar para a caricatura: memes, piadas, diagnósticos improvisados — como se dependência química fosse sinônimo de descontrole absoluto.
Esse tipo de reação não só é impreciso, como perigoso: reforça o estigma e fecha ainda mais as portas para quem precisa de cuidado.
Precisamos falar sobre dependência funcional com seriedade, para que ninguém precise chegar ao limite antes de receber ajuda.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram: @ilanapinsky_